quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Carta de mim para mim a pensar em ti


Gosto de me embriagar serenamente com a maresia salina que a brisa se encarrega de trazer, salpicando os meus longos cabelos queimados pelo verão, rebeldes como tu e louros como seara de trigo maduro ondulada pelo vento.


Aprendi que posso conceber um mundo só meu, onde, por ser tão fantástico e impenetrável, ninguém a ele tem acesso a não ser eu.

Sabes, é por isso que por vezes gosto de me calar e, quando me chamas ostra, finjo que não ouço e encolho-me ainda mais na minha concha. Há muito que adopto esta estratégia de defesa, como se eu fosse autista, porque, não te ouvindo, fujo das palavras que poderias pronunciar e que talvez me magoassem.

Nunca poderás compreender os meus silêncios, nem eu quero que os entendas. Não vale a pena…! Eu sou um caso perdido, qual ovelha tresmalhada que se perdeu do rebanho. Por isso, talvez nunca me encontres…!

Mas gosto de ser assim. Gosto de me sentar ao fim do dia no extremo do pontão da “minha” praia e olhar ao longe as luzes que resplandecem sobre Almada. E ficar assim como que protegida na outra margem.

É como se estivesse escudada ou ficasse dissolvida na miríade dos focos de luz que cintilam, disfarces que por vezes me fazem sentir uma intrusa na pele esverdeada de uma alienígena em terra de luzes estranhas.

É por tanta coisa, que por ser ostra nem me afoito escrever, que preciso destes momentos só meus no declínio intimista da tarde. Para me transformar numa ilha longe de todas as searas sem ninguém a desvendar o trigo dos meus pensamentos. Para me embriagar fácilmente no horizonte esbatido da maresia salina, para ser eu até onde os meus olhos alcancem, abrindo janelas serenas que eu preciso de sentir no meu peito…

©Piedade Araújo Sol  2007/11/29

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

O teu último livro


Raramente falamos sobre livros. Evitámo-lo como as águias se esquivam das árvores para melhor contemplarem o solo que as suportam. Paradoxalmente, nunca sei quando publicas um novo, embora tenhas já tantos que lhes perdi a conta. Sou a primeira pessoa a lê-los, mesmo antes da própria editora.

Nunca mencionas o facto, apenas me deixas uma cópia na minha caixa de correio. Jamais dizes nada, mas quando a abro e vejo uma pen, sei que foste tu que a deixaste lá. Adivinho-o!

Antes eram folhas dactilografadas em A4. Depois passaram a ser disquetes. Agora são pens. Mas o método é a mesmo. Desnecessário será dizer que nesse dia fico agitada e que a minha mente só atinge alguma tranquilidade quando acabo de ler o último parágrafo.

Li e reli o teu último.

Confesso-te que estava com uma enorme incerteza ao iniciar a leitura. Do anterior até este, os meses foram passando renitentes, numa espera cada vez mais dolorosa.

Afinal, confirmei que tudo continua como dantes.

Li-o e ambos sabemos que é a tua história.

Mas existe ali um segredo que sabias que só eu o conseguiria desvendar. Li este livro ao contrário e reparei que, lendo-o dessa maneira, está ali a história da minha vida.

Sei também que este será o último… e dói-me saber que a minha alma nunca mais te poderá dizer para escreveres outro. Mesmo que a história não seja a tua. Nem a minha. Porque o amor, tal como as árvores não conseguem voar imitando as águias.

É impossível.


©Piedade Araújo Sol 


(Foto:autor desconhecido)


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sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Luto


Não sei porque agora ando sempre vestida de negro.

Antigamente eram só as viúvas que se vestiam assim, mas hoje as viúvas já usam roupas coloridas e até nos funerais já não se veste só negro.

Não sei porque agora ando sempre vestida de negro.

Há dias li numa revista que estava jogada no lixo, que era chique, vestir-se de negro, e descreviam vários nomes de pessoas famosas que agora também se vestem assim.

Não compreendi, eu nunca gostei de preto, faz lembrar-me a morte.

Faz lembrar-me o dia que o pai morreu e a mãe ficou imóvel e calada. E a partir desse dia sentada na cadeira de vime junto à janela do quarto de dormir, toda vestida de negro, ficou para ali alheada de tudo e todos, a olhar o mar, e nunca mais foi a mesma pessoa.

Não sei porque hoje abro o meu guarda-roupa e só tenho roupa preta, todas as cores da minha roupa desapareceram, o branco, o azul, o rosa e agora só existe lá roupa preta.

Até as botas, os sapatos e os ténis, são agora dessa cor.Os vários chapéus e boinas de diversos modelos, vestidos, camisolas, calças, casacos são tudo negros.

Que se passa… de quem é esta roupa?(!)

Hoje ao olhar-me ao espelho, inexplicavelmente os meus olhos que eram de um verde líquido e transparente, também eles estão pretos…


Fonte da Telha, 2007-11-16

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Olhos cerrados no sonho


aconchegada num manto de estrelas videntes nas areias da praia, pernoitei cálida e embriagada pelo cheiro que vi do teu mar. na melodia soprada pelas vagas, carícias de música de embalar, sonhei-me extraviada nos enigmas impenetráveis do teu corpo. com os teus braços a enlaçarem-me ternamente, deixei-me ali ficar amortalhada, de olhos cerrados no sonho e com medo de te acordar….



Foto:Marta Ferreira

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Pesadelo

Caíu pesadamente nos frios
degraus de pedra.
Calou-se no manto escuro da morte...

O sangue quente.
A dor pungente, insensível,
negra, o pesadelo feito desmaio...

Em agonia, sentiu os espasmos,
escorrendo, inundando-a...
Resistiu, abriu o véu para a vida.

Umas mãos estendidas. Um
cheiro ocre.(hospital?!) Agitação de
vozes...

Uma seringa!? Uma lágrima quieta,
abandonada. Uma vida que fica.
Uma partida sem vida.

E tudo o mais
foram trevas... até que outra vida
decretasse morte ao pesadelo.


(Obs: este poema, que talvez não seja poema, é dedicado a uma mulher que sofreu um aborto espontâneo)
Foto:António Carreteiro

domingo, 4 de novembro de 2007

Blogue das Artes



A partir de hoje também podem contar com a minha colaboração no Blogue das Artes, agradecendo ao Tiago Nené a honra pelo convite. Os sócios fundadores - Tiago Nené e Duarte Temtem - assumem como propósito guindar o Blogue das Artes a espaço "de referência para as artes em Portugal", .
Espero merecer a distinção.