terça-feira, 27 de dezembro de 2011

tenho espelhos de água dentro de mim


tenho espelhos de água dentro de mim que se agitam na sombra dos dias apagados, nas cores desbotadas, na retina dos olhos despojados de esperança, da ternura das águas corrompidas.

dos olhares cativos, sei dos pássaros que sobrevoam o voo possível, para lá dos estilhaços, que sem querer retenho nos escombros dos abismos que se estendem sem mim.

um dia estarei de perfil a juntar as pétalas das camélias, que sem querer a chuva destruiu, e as minhas mãos a desdobrar a doçura moribunda que a primavera anunciou.

ainda  e sempre tenho espelhos de água dentro e fora de mim.

© Piedade Araújo Sol 2011-12-27
Foto : asiasido

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

muitas vezes


muitas vezes encostei a cabeça ao vento
e apenas lembro o meu cabelo revolto
a tapar-me os olhos  e a falar-me sem nexo.

a vida falível o frio na tarde
a areia molhada, estendida , esquecida
os braços lassos, o olhar sem fim, sem mim.

asas migratórias que espero sem pássaros
as árvores seminuas
o coração fustigado –reflexos apenas, de penas.

disseram-me que numa manhã de dezembro
as árvores cantavam, amavam
(e ninguém sabia o canto das árvores).

só o Poeta.
.

© Piedade Araújo Sol 2011-12-20
Imagem : Brooke Shaden

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

é com tintas de fogo


é com tintas de fogo
que pinto o teu corpo
incendiado nas marés
em constante rebuliço
abraçado de sargaços.

se algum dia o identificares
nalguma tela, não te importes
será apenas o teu corpo
e nunca será nem das marés
nem do mar.

é com tintas de água
que pinto o meu rosto
salgado de maresia
com odor de algas transparentes
sobre os meus cabelos.

mas serão sempre os azuis
desordenados
entre o mar e o céu
que darão cor às minhas
telas.

© Piedade Araújo Sol 2011-12-12
Foto Keita
Tela SamanthaFrench

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

vi a minha cidade


vi a tristeza entrelaçada
com teias de aranha nas montras
os vidros embaciados
as portas fechadas
o silêncio dolente
vi a minha cidade – abandonada.

era dia de sol
e cheirava a mofo e a chuva
as minhas mãos crispadas
no fundo dos meus bolsos vazios
e a solidão com feridas profundas
no esquecimento anunciado.

o chão amargo da melancolia
prenhe de fragrâncias com história
e de cheiro a fado nas esquinas
a calçada à portuguesa impregnada de rostos
de olhar em quebranto cingido.

já ninguém sabe de mim
nem dos meus sonhos tresmalhados por aí
nos barcos ancorados
e  nos livros da cidade
já ninguém me conhece nas esplanadas da tristeza
vi a minha cidade – abandonada.

© Piedade Araújo Sol 2011-12-06
Foto: timbarber