terça-feira, 29 de novembro de 2016

A vida de um poeta

peter neske

Quando lhe faltava  inspiração
andarilhava pela cidade, e pensava
no destino, diziam que todos tinham um,
ou um porto onde ancorar.
Não se importava muito com isso,
bastava um farrapo de nuvem,
um sopro de vento,
e a inspiração voltava silenciosa,
por vezes violenta e sem maneiras,
outras vezes,sorrateira e ardilosa.
Outro dia pensou que os seus passos
eram desordenados,quando o seu olhar leu o sentir
no orvalho de uma planta,
cheia de estilhaços de vidros,
de algum espelho que se partiu
e ali foi cair, sobre a planta desprotegida.
Sentiu-se desconfortável porque
colorir a vida, era seu apanágio.
E voar pela escrita, era necessidade
do corpo e da mente.
Nesse dia a folha branca sem mácula e sedutora
à espera de ser escrita
continuou  impecavelmente em branco
enjeitada sobre a secretária,sem uma letra sequer…

© Piedade Araújo Sol 2016-11-28

terça-feira, 22 de novembro de 2016

O poeta em criação


Coisa estranha essa de querer escrever sobre as águas diáfanas e cheias de transparências.
 Mas tu dizias:
-É tão fácil escrever sobre as águas…e sorrias.
Um dia tentei entender essa teoria e quedei-me quieta a olhar o mar e seu persistente marulhar.
Entendi o sol em seu beijo nas águas, entendi a lua em seu clarão nas noites mais amenas, e entendi as pinturas que se podem fazer na água.
E entendi (tarde) quando dizias que era fácil escrever sobre as águas.
E senti garatujos de saudades a sulcarem as marés e suas águas, quando por vezes calmas, outras vezes ferozes, vinham beijar a areia.
Entendi a tua teoria,
Aos poetas tudo lhe é possível.
E, nunca tive tempo de te dizer.

© Piedade Araújo Sol  2016-11-21

terça-feira, 15 de novembro de 2016

As mãos

anna o.photography

Tantas vezes demos as mãos.
Entrelaçadas,
pele com pele,
e vezes outras, tantas,ficaram
desamparadas, ao longo do corpo
onde pesavam os anéis inexistentes.

Aprisionamos o que tínhamos,
em marés de devaneios,
levados no tempo e no vento,
tantas vezes, confundimos as mãos,
as cidades,
o horizonte e o poente.

Hoje!
Ao ver o dia despedir-se de mim,
cheio de segredos, e antecedendo os mistérios,
da noite e do novo amanhecer,
sei que algum poeta subiu à escarpa mais alta,
e com as mãos em concha disse o meu nome.

Eu sei! O eco ressoou e chegou até mim

©Piedade Araújo Sol 2016-11-14

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Sombras_____

jenna martin photography

Havia sombras ____ que a perseguiam, na sua constante caminhada.
Não seriam sombras, mas apenas detalhes escurecidos____argumentava, para si.
Por vezes eram raios de sol forte que a encadeavam e lhe feriam os olhos.
Devia ser porque eram claros, cogitava e encolhia os ombros .
Sabia serem apenas atrapalho para que os labirintos se intrometessem no caminho que se queria limpo e lesto, sem obstáculos.
No outro dia uma gaivota segredou-lhe e disse que ninguém sente sombras que elas são apenas percalços do dia ou da noite.
São por isso vulgares, não se lhe devem dar atenção.
Há outras sombras que ela sabe, mas prefere nem saber e entrar no azul do dia, mesmo que o sol lhe incendeie a vista.
Afinal que importam as sombras, se ela entendia que todos os caminhos a levavam ao mar e que afinal eram só detalhes.

© Piedade Araújo Sol 2016-11-07

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Partidas

Anna O. photography

Ela estava sentada, imóvel, com um olhar amedrontado como quem está esperando coisa nenhuma. Olhava apenas o que outrora fora um cais, com barcos que já não existiam.
Por vezes a memória é um abismo que se desvanece, nas constelações e nas escamas rebeldes dos peixes, no aquário.
Quando se levantou, levava as mãos fora dos bolsos do vestido, e carregava um braçado de flores silvestres, nos braços esguios.
Com um gesto resoluto despenhou as flores nos abismos do mar, e quase que eu jurava ter visto espelhos de água, líquenes e rochas calcárias a absorverem as flores como uma dádiva dos céus.
A partir desse dia ela atravessava a cidade pela tarde, ainda com o sol no olhar.
Ia sempre com muita pressa como se algo a impelisse, no passo estugado, no acaso do destino.
 As mãos iam sempre dentro dos bolsos do vestido comprido até aos pés, mas, que lhe deixava a descoberto umas sandálias de pele nos pés pequenos.
Desapareceu em Outubro num dia de chuva, talvez misturada com as águas em vertigem em correria para desaguar nalguma foz.
Disseram que talvez fosse de outro País, e eu pensava que seria uma flor a renascer no princípio do abismo, em que parecia se encontrar.

© Piedade Araújo Sol 2016-11-01