terça-feira, 31 de outubro de 2017

eu posso desenhar um poema

Pier Toffoletti
eu posso desenhar um poemaé como escrever, só que de maneira diferentecom o meu desenho eu posso transmitir a sensibilidade das palavras que não digo, apenas pelo olhar que o leitor tenha, pela paixão ou não, que coloquei no meu desenho.
as linhas, por vezes imprecisas da minha mão nem sempre segura, podem ser apenas rabiscos de cores ou uns riscos e, no entanto, falarem de amor e de paixão, de ódio e de desamor de ruas e cidades. podem transmitir um sorriso, uma cor, um corpo, um sabor.
o beijo e o abraço podem ser desenhados assim e, sem que me entendam, posso falar num poema que, não sendo escrito, é pintado com as cores da vida.
© Piedade Araújo Sol 2012-02-21
(Reeditado)

terça-feira, 24 de outubro de 2017

O Poeta

Saul Landell

Pintou palavras desordenadas
Num coração desobediente
Insatisfeito e faminto
De novas cores

Pintou algas nos cabelos
Com palavras que se formaram sombras
Diluídas nas águas
Do poema

E ficou confuso
Ao limpar os olhos
E sentir palavras
Com gosto de cloreto de sódio

© Piedade Araújo Sol 2010-06-08
(Reeditado)

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Os beijos nús

Istvan Sandorfi

Os beijos, trocados nus
na obscuridade da casa,
fecharam a luz e a água.

A casa, no monte das madressilvas,
ficou com a cama no chão.

O sabor a mirtilos,
dos teus lábios nus nos meus,
deixou a casa sem chave,
sem porta e sem tecto.

 O luar e as estrelas,
pousaram nas minhas mãos e nas tuas.

O mundo dentro de nós
quedou-se sem amanhã, sem ontem.

Apenas nós e o hoje.

O tempo de estações
invadiu-nos sem tempo, sem preâmbulos.

Os beijos nus,
tão nus como nós quando nascemos.


© Piedade Araújo Sol 2010-11-16 
Reeditado

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Vidas Duplas

TJ  Scott
Deslizo o meu corpo sobre a tua cama deserta ainda desfeita. Revivo-te nos lençóis com as marcas do teu corpo e com o teu cheiro a plantas silvestres.

Durmo na tua cama, nestas águas furtadas que com tanto esforço vais pagando a mensalidade. Magoa-me o dividirmos as contas quando vamos jantar, tu a escolher sempre o prato mais acessível da carta e eu deixar-te pagar a tua parte. Porque se pagasse tudo irias pressentir de algo que eu não quero que saibas.

Não sabes quem sou, talvez nunca venhas a saber quem sou eu na realidade. 

Não sabes nada de mim. Nada vezes nada, resumido a nada. Mas talvez adivinhes o ilícito do corpo que trago impotente nos olhos, talvez que o teu instinto de mulher não queira questionar os silêncios inconfessáveis que me devoram a alma.

Foi essa a minha condição. Nada de perguntas!

Estou cansado! Tão cansado de tudo! De andar de viagem em viagem, de não saber quando é a próxima etapa. De partir com medo que um dia quando volte já não estejas aqui à minha espera.

Amanhã resolvo isto, digo sempre de mim para mim. Amanhã! Amanhã! E amanhã pode ser tarde. Demasiado tarde para mim e para ti e para os sonhos que desenhei além de ti e de mim.

Tu ris, dizes que gostas de rir e assim sentes-te bem. E por vezes o teu riso é um esgar para enganar o que sentes, quando me vês pegar na mala azul com rodinhas e seguir para o aeroporto. Mas sabes, eu sei que mentes. Mentes como eu também minto a mim próprio a ti e a tudo o que me rodeia.

Mentes sempre, pois no outro dia quando voltei para trás porque o voo tinha sido cancelado, encontrei-te deitada sobre a cama, onde agora estou. Estavas deitada na posição fetal e voltada para o postigo, por onde uma réstia de luz mal te distinguia. Choravas baixinho. Disfarçaste e alegaste estar constipada.

Tens medo de assumir o que temos e nem sei se temos alguma coisa, sei apenas que delimitei um prazo. Reformo-me “disto” aos quarenta anos e vou viver contigo de país em país. Talvez me refugie numa ilha junto ao mar e compre um barco onde possa viver contigo.

Talvez não tenhas mais que andar a fazer poupanças para pagar a renda destas águas furtadas e faças aquilo que gostas. Continuares a pintar o teu mar de verde e o céu de azul. Talvez eu não tenha que andar mais de aeroporto em aeroporto com a mala azul de rodinhas atrás de mim, sempre receoso do tiro que me persegue nos sonhos.

Nem sabes meu nome, pelo menos o que está nos documentos verdadeiros. Mas será esse que passarei a usar. Assim tentarei esquecer este que uso agora e esquecerei quem fui.

Sinto os olhos cansados, tão cansados, as pálpebras parecem-me de chumbo, quero abri-los e nem consigo.

Está decidido, amanhã resolvo isto....

(Obs:Este texto é pura ficção, qualquer semelhança com factos reais será mera coincidência)

©Piedade Araújo Sol  08-10-2007
(Reeditado)

Um anjo na terra


São cinco horas da madrugada.
Não choveu, e no entanto paira no ar uma forte fragrância a terra molhada, como se após uma noite de chuva.
Uma mistura de odores que se diriam enigmáticos, nesta madrugada em que não consigo conciliar o meu sono.
Despertou-me este cheiro de terra molhada com uma mistura de maresia, uma misteriosa cadência de sons e murmúrios,
Vejo um castelo de pedra negra e cinzenta, e um guerreiro muito ao longe com uma cruz azul cravejada de diamantes ao peito, e a mesma cruz bordada na manga esquerda do seu traje. Tem no dedo anelar esquerdo, um anel com um brasão simbolizando um rio de água e um sol resplandecente.
Fecho os olhos e procuro alucinada as minhas asas. Tenho de me transformar em anjo. Tenho de prolongar este momento, e poder voar nas asas da minha imaginação. Quero aspirar o cheiro da terra molhada, e suspensa no tempo, rever a minha longínqua Escócia e o regresso do meu guerreiro de mais uma das suas conquistas.
Que estranho! É tudo tão irreal e tão efémero que se desvanece na minha memória, e não lhe consigo ver o rosto. Não sei se sonhei, se aconteceu mesmo ou se tudo é fruto de mais uma fantasia, e divagação.
São cinco horas da madrugada.
Levanto-me e vou à varanda. Está tudo tão calmo e sereno. As águas da baía repousam pachorrentas e o sol teima já em espalhar os seus raios sobre a cidade.
Olho e não vejo castelo nenhum, nem guerreiro, nem anel com brasão.
O ar está sem cheiro.
É só mais um dia a nascer.
Olho a mesa da entrada.
Que estranho!
Está lá um fio de prata com uma cruz azul cravejada de diamantes... que eu não conheço.
Nunca soube como lá apareceu, mas ainda hoje a trago ao peito...

 © Piedade Araújo Sol  2004-08-01
(reedição)